Ainda a propósito de música e , neste caso ,da sua produção e divulgação,
aqui ficam algumas reflexões do brasileiro Marco Schneider
na tese de mestrado intitulada --”Música e capital midiático--
introdução a uma crítica da economia política do gosto”-- defendida
em 2003 na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Se aumentou o acesso relativo do produtor simbólico aos estúdios
(o que não elimina, por isso, a necessidade de um investimento
relativamente alto para um cidadão brasileiro comum) e
mesmo às fábricas de prensagem (em menor escala, pois tiragens
gigantescas não dispensam uma aplicação considerável de capital),
o seu acesso aos sistemas de emissão massivos permanece
subordinado às exigências do grande capital (sem falar no jabá),
o que, no geral, inviabiliza economicamente a reprodução social
das produções independentes do produtor direto que se pretendam
mais autônomas. Assim, o produtor independente continua tendo
que lidar com a indústria cultural, seja diretamente com o centro
(as mega-empresas), seja com a periferia (as pequenas e médias
gravadoras e os selos, que representam parte da pulverização do
capital e dos meios de produção, não sua distribuição entre os produtores
simbólicos). Mesmo que pequenas gravadoras tendam a
alienar menos valor simbólico que as grandes, assegurando maior
autonomia relativa ao campo de produção simbólica, por estarem
menos diretamente determinadas pelos imperativos econômicos
reinantes, já que não possuem capacidade de reproduzir e pôr
em circulação o produto simbólico em larga escala, o que permite
até certo ponto a influência de fatores extra-econômicos (o
gosto musical do dono ou dos donos da gravadora, por exemplo),
e isso não deixe de representar um espaço social concreto para
uma nova fase de acumulação de valor simbólico e de elaboração
de táticas de defesa, é importante ter-se em conta que no estágio
atual de desenvolvimento da indústria cultural, após um século de
acumulação de capital midiático, após ter ocupado quase todos os
espaços sociais de produção, reprodução, circulação e consumo
de bens simbólicos, a existência da produção independente, do
ponto de vista do capital e do capital midiático, representa somente
contenção de despesas e formação de um exército de reserva
simbólica. Se isso pode eventualmente representar, para
alguns produtores individuais, um tempo de sobrevivência na periferia
(em geral elitista) da esfera da reprodução, da circulação e
do consumo simbólico, ou mesmo a ambicionada absorção pela
grande indústria cultural turbinada, que lhes aliena valor simbólico
(alienando-lhes autonomia) mas lhes paga bem por isso, no
geral, para o conjunto dos produtores simbólicos, o fosso entre
sua produção e a reprodução, circulação e o consumo social desta
produção, ao contrário, só aumentou e tende a continuar aumentando;
na melhor das hipóteses, pouco mudou. Pode ter mudado a
configuração da divisão de trabalho, mas não a sua alienação pelo
capital.
Produção musical independente, do ponto de vista econômico,
é, assim, na prática, apenas a transferência da responsabilidade
de investir capital constante (adquirir – compra ou aluguel – os
meios de produção: estúdios e equipamentos) e variável (recursos
humanos) do capitalista para o produtor simbólico; por imperativos
econômicos relacionados a ciclos imprevistos de expansão ou
retração do mercado, o capitalista paga o trabalhador particular,
que produz em escala “doméstica”, por peças produzidas, sem
fornecer-lhe os meios de produção. Excetuando-se as hipóteses
de o Estado ou de empresas privadas não ligadas ao ramo, via leis
de incentivo, festivais e prêmios, ou de um empresário associado
ao produtor simbólico fazerem o papel de capitalista (o que poderíamos
chamar de pré-produção), na produção de um cd, por
exemplo, se o produtor simbólico puder arcar com os custos fixos
(hardwares, softwares ou estúdio para ensaio, gravação, mixagem
e masterização) e variáveis (músicos, técnicos de som etc.) iniciais,
resta ainda o projeto gráfico, a impressão e a prensagem; se
puder arcar com estes custos, resta a divulgação, a distribuição e
a venda do cd; depois, a produção e a promoção de shows. Nesse
ponto, se ainda não tiver falido, é possível que torne-se medianamente
conhecido a ponto de ser requisitado por algum segmento
relevante da indústria cultural (gravadora, programas de televisão,
emissoras de rádio; até então, salvo rádios comunitárias ou piratas
e alguns programas de tv de menor audiência, a única coisa
grátis, e que em geral depende de uma boa rede de relações, é
uma discreta divulgação via mídia impressa). Então, quem sabe,
é possível que uma gravadora se associe, como sócio majoritário,
ao produtor simbólico, sem ter feito nada e sem ter desembolsado
um centavo até então. Caso não receba esta graça, o produtor
simbólico independente, para sobreviver como tal, ainda que às
margens do mercado, terá que concorrer com as mega transnacionais
do entretenimento. Em suma, só lhe restam três caminhos,
além do extermínio social ou mesmo físico: mudar de atividade,
sobreviver à margem ou ser absorvido pela indústria cultural. Em
todos os casos, deve-se investigar não só o grau de autonomia e
força de trabalho alienada (ou jogadas no lixo), mas também de
dinheiro alienado na absorção (ou jogado no lixo).
Necessitando de ganhos de escala cada vez maiores para prosseguir
em sua expansão, o capital investido na indústria cultural
desdobra-se de capital midiático primitivo (de alto valor simbólico)
em capital midiático liberal (de alto valor simbólico), deste
em capital midiático monopolista (de valor simbólico médio) e,
por fim, em capital midiático fictício (de baixo valor simbólico),
resultado de um processo secular de alienação e recalcamento dos
meios e modos de produção simbólicos. Em suma, em sua trajetória,
o capital midiático foi passo a passo caminhando para a
tautologia, diante da qual a operação “toca-se o que povo gosta
de ouvir” inverte-se em “o povo gosta de ouvir o que se toca”.
Para isso as pessoas foram por assim dizer treinadas durante um
século, no qual muito dinheiro foi investido e faturado. E o que
toca não deixa de ser, em linhas gerais, sempre o mesmo, mas
não o mesmo que o “povo” produz segundo uma tradição ou modos
pré-industriais, nem segundo desenvolvimentos formais pos
síveis, mas o mesmo seguindo a indústria cultural. A isso denominamos
tautologia do capital midiático fictício, sem lastro em
práticas e experiências extra-midiáticas, gerador do gosto social
midiático fetichista.
“numa época em que os outros media triunfam,
dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de
ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda
comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a
função da literatura é a comunicação entre o que é
diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas
antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria
da linguagem escrita.” (Calvino, 1994, p. 58)
Quando Calvino fala em literatura e na “vocação própria da
linguagem escrita”, creio que se poderia estender o raciocínio a
todas as formas de produção simbólica sobreviventes (ou resistentes)
baseadas em modos de produção anteriores ao estágio turbinado
da indústria cultural, como parte da literatura, da música,
da produção acadêmica etc. (digo parte, pois, por exemplo, livros
de auto-ajuda, jingles e determinada produção acadêmica estão
completamente subordinados a ela), que conservam maior grau
de autonomia relativa, ainda que nas periferias ou nos subterrâneos
de sua esfera de ação. Tentamos demonstrar que o que caracteriza
esse estágio turbinado da indústria cultural é o momento
histórico atual, passagem do estágio monopolista do capital midiático
para o de autoreprodução de capital midiático fictício –
correspondendo com certo atraso ao estágio de domínio global do
capital financeiro, ou fictício.
Esta passagem deve-se ao fato de que a indústria cultural tornou-
se, ou está se tornando, cada vez mais tautológica, conduzindo,
com o tempo, com o esquecimento, com o esgotamento e
a destruição de todos os outros modos de produção simbólica, ao
risco apontado por Calvino de “reduzir toda comunicação a uma
crosta uniforme e homogênea”, ou seja, à autoreprodução do capital
midiático fictício. E a produção musical do século XX, seja
samba, choro, jazz, rock, tango ou música dodecafônica, começa
a ganhar o duvidoso status de folclore.
É, portanto, somente da periferia do sistema, ou nos subterrâneos
– menos diretamente subordinados ao automatismo da economia,
portanto menos autômatos –, onde subsistem, quero crer,
esforços de produção e acumulação de valor simbólico relativamente
autônomos, sejam ligados a tradições transformadoras ou a
tradições de raiz, que se pode esperar ações de contra-ataque, no
momento em que o underground tornar-se maduro para transformar-
se em avant-garde e partir para a luta pela democratização radical
dos meios de produção, circulação, distribuição e consumo,
apropriados pela indústria cultural turbinada, se é que isso um
dia será possível."
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terça-feira, abril 11, 2006
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